24 de abril de 2010

Os Bairros Operários do jornal “O Comércio do Porto”. Uma aproximação ao estudo da Habitação Higienista na primeira metade do séc. XX no Porto.


http://sigarra.up.pt/faup/noticias_geral.ver_noticia?P_NR=761




Comunicação apresentada ao Colóquio Internacional C+C+W 2010 (Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, 15 Abril 2010)

Esta breve exposição integra-se num trabalho mais vasto de investigação dedicado à arquitectura dos bairros operários, focando a análise, no modo de produção de uma casa destinada a ser Saudável, Económica e Cómoda.
Essas soluções, construídas em torno dos conceitos de salubridade, de conforto mínimo, de rentabilidade produtiva e de eficácia funcional – premissas importantes na formulação da casa-máquina moderna – começam a ser enunciadas entre nós no início do século XX, primeiro por iniciativa filantrópica, associadas à estrutura económica do complexo fabril, depois, promovidas pelas primeiras cooperativas e, já com a Primeira República, fomentadas por Municípios e pelo próprio Estado.

Porquê o estudo de casas tão modestas? - De arquitectura tão afastada dos edifícios do Grande Desenho ensinado nas Academias.


Na realidade, tratam-se de arquitecturas quase anónimas mas onde, em nosso entender, é visível um processo de transformação do habitar provocado pela chegada daquilo a que, num artigo de 1899, Adolph Loos, figurativamente apelidava de “O Picheleiro”. Ou seja, o reconhecimento de dois tipos de fenómenos decisivos ligados à questão da higiene: um técnico (a incorporação e gestão no espaço doméstico dos fluxos associados a uma nova ideia de conforto - saneamento, abastecimento de água e renovação de ar - exigidos pelas medidas sanitárias que vinham sendo incrementadas desde final de Oitocentos); o outro, social, baseado na cultura do limpo, identificável nos hábitos de higiene doméstica, no robustecimento físico e na conduta moral do individuo, na ideia do controle social em prol da coesão de uma certa imagem de pátria.

Podemos sumariamente responsabilizar o aparecimento destes novos termos em que a casa é concebida, à ciência médico-sanitária consolidada no século XIX: a Higiene.

Conforme refere Maria Castrillo Romón:
“O papel da Higiene no movimento da reforma do habitat foi crucial. Por um lado, no contexto progressivamente dominado pelo positivismo, estabeleceu pontes entre as ciências biomédicas e a intervenção sobre o espaço, com o qual cobriu as aspirações da “cientificação” da prática urbanística e edificatória. Por outro lado, o grau de consenso politico forjado ao redor das questões da higiene, abreviou o caminho para a profunda reorganização do habitat que o reformismo (guiado não só por estritos fins sanitários) impulsionou a todas as escalas, desde a cidade ao interior doméstico”.[1]

A comunicação explorará pois o tema do Higienismo, entendido como ciência e como moral, aplicado ao pensamento e à produção da habitação no contexto particular da habitação operária na primeira metade do século XX. Pretende-se perspectivar algumas chaves de leitura sobre a constituição de modelos de Casas Económicas Saudáveis e Cómodas, aquilo a que genericamente apelidaremos de Casa Higiénica.

OS BAIRROS DO JORNAL DO COMÉRCIO DO PORTO

O caso de estudo a seguir apresentado reporta-se aos três Bairros Operários que o jornal O Comércio do Porto mandou construir entre 1899 e 1904.

Para se compreender a singularidade dos projectos dos bairros do “O Comercio do Porto” é necessário dar alguma informação sobre o contexto em que esses bairros são produzidos, nomeadamente sobre a situação do alojamento do operariado na cidade do Porto e sobre duas personalidades cuja acção irá, por diversos modos, directa ou indirectamente, influenciar a arquitectura dessas construções.
Referimo-nos ao prestigiado médico higienista Ricardo Jorge (1858-1939) e ao jornalista e economista Bento de Sousa Carqueja (1860-1935).

O forte desenvolvimento industrial existente no Porto no final de Oitocentos e o associado crescimento demográfico alimentado por uma população imigrada do campo, agravou e fomentou o alojamento barato e débil baseado numa sobre-ocupação das casas existentes e recorrendo ao preenchimento do interior dos quarteirões com filas de pequenas habitações insalubres e miseráveis.
 Era uma face da cidade escondida a que os higienistas irão dar visibilidade por ser potencial antro de infestações. Será essa a realidade de espaços esconsos, sombrios e infectos tomada pelo médico Ricardo Jorge.

Em 1885, sob os rumores das vagas epidémicas que assolariam o país, Ricardo Jorge escreve o livro Hygiene Social Aplicada à Nação Portuguesa [2] onde promove a nova ciência higiénica contra o atraso sanitário das urbes, nomeadamente, nos seu aspectos de organização administrativa, de modernização das infra-estruturas e do controle de hábitos sociais.
Convidado a trabalhar para a Câmara Municipal do Porto, incrementa uma série de inquéritos e estudos analíticos que funcionarão como fundamento cientifico para o lançamento de um conjunto de propostas profiláticas. Uma das ideias que fomenta é a de que o estado deve impor medidas legislativas protectoras.
Com a pressão de uma eminente eclosão epidémica, começam a ser introduzidas alterações significativas nos procedimentos administrativos e nas normas regulamentares sobre a construção de edifícios.
Destaca-se em 1895, ao nível das Posturas Municipais do Porto, a obrigatoriedade de instruir os processos de licenciamento com plantas, cortes, alçados e pormenores da rede de saneamento (até então apenas era necessário entregar o alçado de rua). Em 1901, já Ricardo Jorge, Inspector Geral de Saúde, será publicado com base num seu relatório, o Regulamento Geral de Saúde que conduzirá à primeira legislação nacional dedicada especificamente às edificações urbanas.
Segundo o seu art. 10º (Regulamento de 4 de Dezembro de 1901), os serviços de saúde pública tinham por fim "vigiar e estudar tudo quanto diz respeito à sanidade publica, à hygiene social e à vida physica da população, promovendo as condições da sua melhoria", destacando-se:

·       A estatística demográfico-sanitaria;
·       A salubridade dos lugares e habitações;
·       A higiene da indústria e do trabalho.

Na sequência daquelas medidas legislativas surge em 1902 o Regulamento sobre a Construção de Prédios Urbanos e o Regulamento de Salubridade das Edificações Urbanas, documentos que estarão na origem do actual Regulamento Geral das Edificações Urbanas (RGEU) que vigora desde 1951.

Por exemplo, o Regulamento de Salubridade das Edificações Urbanas de 1902, para além de limitar as cérceas em função do perfil do arruamento impunha, entre outros, que a altura mínima entre pisos não fosse inferior a 3,25m no R/C e 1ºandar; 3,00m no segundo; 2,85m no terceiro e 2,75m nos sucessivos. Também, o pavimento do R/C devia ter uma caixa de ar com 60cm de altura; as janelas deveriam ser amplas para darem entrada ao ar e à luz, tendo pelo menos de área um décimo da superfície do pavimento do compartimento, com um mínimo de 0,28 m2 nos quartos.

Em síntese:

-         com Ricardo Jorge e os seus pares, a reforma sanitária, que decorre entre 1899-1901, consagrava o conceito de Estado Higienista[3].
-         na transição de século, havia já um quadro legal, normativo e fiscalizador que obrigava à Casa Higiénica.


Outra personalidade importante para a leitura do aparecimento dos Bairros Operários do Comércio do Porto é Bento Carqueja, administrador e director do jornal portuense, intelectual distinto e homem mobilizador. Do seu circulo de amigos constava, entre outros, Teixeira Lopes, António Carneiro e Marques da Silva, responsável pelo projecto da sua casa de férias em Ferreiros – Oliveira de Azeméis [4]. Alias o seu relacionamento com arquitectos importantes na cidade passou também por Rogério de Azevedo que nos anos 30 é convidado a projectar a nova sede do jornal, na Avenida dos Aliados, e uma das creches do Comercio do Porto, na Avenida Fernão Magalhães.
A sua vasta produção teórica reflecte as suas preocupações sociais nomeadamente a que se refere ao fomento do alojamento da classe operária. O Futuro de Portugal (1900), A Sciencia e a Industria em nossas Casas (1912), O Povo Portuguez. Aspectos Sociaes e Económicos (1916), são obras de conteúdos transversais, desde a História da Economia até à Ciência Doméstica, passando pela abordagem da “Questão Social”[5] o grande tema político na passagem da Monarquia Constitucional para a República.

A promoção de alojamento para as classes pobres por parte do Comercio do Porto decorre directamente da mortalidade que a peste bubónica provocou na população residente no centro histórico. Para o financiamento dessa causa, Bento Carqueja reunirá o apoio directo de beneméritos oriundos dos mais diversos sectores da sociedade, incluindo a família real.

O documento que estabelece a construção das primeiras casas, assinado por Bento Carqueja e restantes proprietários do Comércio do Porto, refere que os bairros seriam “dotados com as máximas condições higiénicas e organizadas em harmonia com os melhores modelos destas fundações no que forem adaptáveis no nosso pais”[6].


Quais os Modelos?
Que Fundações?

Até à implantação da República uma série de propostas de lei vão sendo apresentadas ao Parlamento sobre o alojamento operário.
Os seus conteúdos eram influenciados por um conjunto de publicações europeias – maioritariamente francófonas - dedicadas à questão da casa higiénica e promovidas pelo Movimento Higienista. É o caso dos relatórios dos Congressos Internacionais de Higiene ou das secções dedicadas à Higiene nas Exposições Internacionais, mas também os livros técnicos ou os almanaques dirigidos ao grande público.
Quanto aos modelos, por exemplo, numa notícia no “O Comércio do Porto”, a propósito dos elogios à iniciativa do jornal pelo Ministro das Obras Públicas e da Justiça - João de Alarcão – quando propôs um lei sobre a promoção de bairros operários[7], lia-se:
“Em todos esses tipos (de casas) houve a preocupação de criar habitações acomodadas ao nosso clima e ao nosso meio social, sem se perderem de vista os requisitos a que, segundo as opiniões expressas por higienistas, por sociólogos e por arquitectos, em livros e congressos, devem satisfazer as casa baratas, para realizarem completamente o fim útil e humanitário a que se propõe”.[8]

Uma das propostas parlamentares de Augusto Fuschini, em 1884, em nota de rodapé ao texto, recomendava-se a leitura da obra de Émile Muller e Émile Cacheaux,
[9] “As Habitações Operárias”, publicada em Paris em 1878[10]. O seu conteúdo e o seu sucesso editorial revela uma migração de modelos que devem ter seguramente influenciado trabalhos num vasto território. Conforme intenção dos autores o livro, que recolhia exaustivamente projectos de casas operárias a nível mundial, devia se constituir como um instrumento pedagógico e técnico para a expansão do movimento das cidades operárias.

Nos três bairros analisados podemos encontra, de facto, um processo experimental, não só quanto à tipologia, mas igualmente sobre formas de actuação mais vastas que passaram pelo controle e verificação da sua reacção pelas famílias alojadas.

Quando Bento Carqueja propõe construir alojamento para o operariado é clara uma estratégia de intervenção social e politica assente nos seguintes propósitos:

·       Uma arquitectura do desejo que premeia os mais competentes e morigerados;
·       Uma arquitectura de influência que cria hábitos de ordem e de higiene;
·       Uma arquitectura experimental com modelos diversificados e abertos (Manuel Fortunado, projectista do bairro de Lordelo, chega a afirmar que também deveria ser experimentado um Bloco);
·       Uma arquitectura modelo que integra os princípios modernos de salubridade e acomodação a favor da classe operária, possível de ser reproduzida;
·       Uma arquitectura económica que disciplina um habitar mínimo.


A experiência dos Bairros Operários do “Comercio do Porto”, sintetizam, à escala nacional, um quadro de valores e de concretizações, que rivalizam com as mais avançadas práticas no sector da habitação operária na Europa. Nas décadas que antecederam a implantação da República, no Porto não existia um sector industrial alargado e vigoroso, muito menos uma economia firme e estabilizada, que justificasse a produção em massa de casas para o operariado. Daí que estes bairros nunca tivessem assumido a escala urbana das vilas operárias da França, da Inglaterra ou da Alemanha. No entanto eles pressupunham um modelo físico de Cidade Jardim, bem visível na arquitectura de inspiração rural, com uma linguagem de elementos modestos mas sempre a lembrar as Cottages inglesas utilizadas, por exemplo, na cidade-jardim de Port Sunlight cujo inicio da construção dista 10 anos do Bairro do Monte Pedral da autoria do arquitecto Marques da Silva.

Numa proposta de lei do ministro das obras públicas João de Alarcão de 1905, que começa por elogiar os Bairros do jornal portuense, lia-se: construir os bairros com “os elementos essenciais à vida – o ar puro do céu que é a saúde do corpo, a luz clara do sol que é a alegria do espírito”[11].
O texto que em parte viria a ter força de lei em 1918 – já depois de implantada a Primeira República - originando os denominados Bairros Sociais, é marcadamente apologista da casa unifamiliar com jardim e horta. Num contexto mais alargado encontramos o mesmo sentido nas palavras do urbanista espanhol Arturo Soria y Mata (1844-1920) quando afirmava que “A cada família, uma casa, em cada casa, uma horta e um jardim”.

Verifica-se que o discurso do regime de Salazar sobre o Programa das Casas de Renda Económica de 1933, estava já agendado nas propostas de Casas Económicas Saudáveis e Cómodas promovidas nos últimos 30 anos que antecederam a implantação do Estado Novo.



[1] ROMÓN, Maria A. “Castrillo, Vivienda social y planificación urbanística: vestígios reformistas en la prática actual”, Revista de Sociologia, nº13, FLUP, Porto, 2003, p.154
[2] JORGE, Ricardo, Hygiene social applicada à nação portugueza. Porto: Civilização, 1885, p.III
[3] Graça, Luis. (2000) - História da Saúde no Trabalho: 2.1. A Reforma da Saúde Pública no Virar do Século XIX (www.ensp.unl.pt/lgraca).
[4] Separata de "O Tripeiro", 7ª série, Ano XIII, nº 8-9, Porto, 1994
[5] Termo utilizado pelo historiador Rui Ramos in “História de Portugal – A Segunda Fundação”, dir. José Mattoso, pág.210.
[6] AHMP, Livro de Próprias: Ofícios de diferentes repartições e autoridades, 1905, fls. 617-8 (in “Um século de Indústria no Norte”, p.114)
[7] Proposta de Lei nº10BB (in Diário Da Câmara dos Senhores Deputados – Sessão nº19 de 22 de Agosto de 1905, pág.15)
[8] O Comercio do Porto, 29 de Novembro de 1905.
[9] Émile Cacheux e Émile Muller, respectivamente, o promotor  e o engenheiro, ainda professor na Escola Especial de Arquitectura de Paris e “Architecte des Cités Ouvrières de Mulhouse & Autres”, foram responsáveis quer pela construção mas sobretudo pela divulgação de uma das mais conhecidas cidades operárias de Oitocentos - Mulhouse. As tipologias empregues serão tomadas como modelos em outras experiências, nomeadamente, em nosso entender, no Bairro de Monte Pedral.
[10] Proposta de Lei nº10BB (in Diário Da Câmara dos Senhores Deputados – Sessão de 17 de Maio de 1884, pág.1641)